"Os feiticeiros espreitam a si mesmos constantemente - comentou com uma voz reconfortadora, como se tentando acalmar-me com o tom de sua voz.
Desejei dizer que meu nevorsismo tinha passado e que provavelmente havia sido causado pela falta de sono, mas ele não me permitiu dizer coisa alguma.
Assegurou-me de que já havia me ensinado tudo o que tinha para saber sobre espreitar, mas eu ainda não recuperara meu reconhecimento da profundeza da consciência intensificada, onde o tinha armazenado. Disse-lhe que seria a desagradável sensação de estar arrolhado. Parecia haver algo trancado em mim, algo que me fazia bater portas e chutar mesas, algo que me frustrava e me tornava irascível .
- Essa sensação de estar arrolhado é experimentada por todo o ser humano. É um lembrete da existência de nossa conexão com o intento. Para os feiticeiros essa sensação é ainda mais aguda, precisamente porque seu objetivo é sensibilizar seu elo de conexão até que possam fazê-lo funcionar à vontade.
Quando a pressão do seu elo de conexão é grande demais, os feiticeiros aliviam-na espreitando a si mesmos.
- Ainda acho que não compreendo o que quer dizer por espreitar - falei. - Mas em certo nível penso que sei exatamente o que quer dizer.
- Tentarei ajudar você a esclarecer o que sabe, então. Espreitar é um procedimento, um procedimento muito simples. Espreita é um comportamento especial que segue certos princípios. É um comportamento secreto, furtivo, enganoso, designado a provocar um choque. E quando você espreita a si mesmo, você choca a si mesmo, usando seu próprio comportamento de um modo implacável, astucioso.
Explicou que quando a consciência de um feiticeiro ficava enredada pelo peso de suas aquisições perceptivas, o que estava acontecendo comigo, o melhor, ou talvez nosso único remédio, era usar a idéia da morte para proporcionar esse choque de espreita.
- A idéia da morte é de importância fundamental na vida de um feiticeiro - continuou D. Juan. - Mostrei-lhe coisas inumeráveis a respeito da morte para convencê-lo de que o conhecimento de nosso fim pendente e inevitável é o que nos dá sobriedade. Nosso engano mais caro como homens comuns é não se importar com o senso de imortalidade. É como se acreditássemos que , se não pensássemos a respeito da morte, nos pudéssemos proteger dela.
- Precisa concordar D. Juan que não pensar sobre a morte protege-nos de nos preocuparmos a respeito.
- Sim, isto serve a tal propósito, mas tal propósito não tem valor para homens comuns e representa uma caricatura para os feiticeiros. Sem uma visão clara da morte, não há ordem, nem sobriedade, nem beleza. Os feiticeiros lutam para ganhar essa percepção crucial de modo a ajudá-los a perceber no nível mais profundo possível que não tem segurança sequer de que suas vidas continuarão além do momento. Essa percepção dá aos feiticeiros a coragem de serem pacientes e no entanto entrarem em ação, coragem de aquiescer sem serem estúpidos. Don Juan fixou seu olhar em mim, sorriu e balançou a cabeça.
- Sim - continuou -, a idéia da morte é a única coisa que pode dar coragem aos feiticeiros. Estranho, não é ? Dá aos feiticeiros coragem de serem atenciosos sem serem vaidosos, e acima de tudo dá-lhes coragem de serem implacáveis sem serem convencidos.
Sorriu outra vez e cutucou-me. Disse-lhe que estava absolutamente aterrorizado pela idéia de minha morte, que pensava a respeito com freqüência, mas que certamente isso não me dava a coragem ou me incentivava a entrar em ação. Apenas me tornava cínico ou fazia com que eu caísse em estado de profunda melancolia.
- Seu problema é muito simples - disse ele. - Você fica facilmente obcecado.
Estive lhe dizendo que os feiticeiros espreitam a si mesmos para quebrar o poder de suas objeções. Há muitas maneiras de espreitar a si mesmo. Se não deseja usar a idéia de sua morte, use os poemas que lê para mim para espreitar a si mesmo.
- Como disse ?
- Disse-lhe que há muitas razões pelas quais gosto de poema - retrucou ele. - O que eu faço é espreitar a mim mesmo com ele. Provoco um choque em mim mesmo com eles.
Escuto, e enquanto você lê, calo meu diálogo interno e deixo meu silêncio interior ganhar impulso. Então a combinação do poema e do silêncio desfecha o choque.
Explicou que os poetas anseiam inconscientemente pelo mundo dos feiticeiros. Por não serem feiticeiros no caminho do conhecimento, os anseios são tudo o que tem.
(...)
...este incessante morrer obstinado,
esta morte vivente,
que te retalha, oh Deus,
em tua rigorosa obra
nas rosas, nas pedras,
nos astros indomáveis e na carne que se queima,
como uma fogueira acesa por uma música,
um sonho,
um matiz que atinge o olho.
...e tu, tu próprio, talvez tenha morrido eternidades de eras aí fora,
sem que saibamos a respeito, nos refúgios , migalhas , cinzas de ti;
tu que ainda estás presente,
como um astro imitado por sua própria luz,
uma luz vazia sem astros
que nos alcança,
escondendo sua infinita catástrofe.
" Quando ouço as palavras - manifestou-se D. Juan quando terminei de ler -, sinto que aquele homem está vendo a essência das coisas e posso ver com ele. Não me importo sobre o que seja o poema. Importo-me apenas sobre o sentimento que os anseios do poeta (filósofo) trazem até mim. Empresto seus anseios, e com eles empresto a beleza. E me maravilho diante do fato de que ele, como um verdadeiro guerreiro, derrame-o sobre os receptores, os espectadores, retendo para si mesmo apenas sua ansiedade. Esse impuxo, esse choque de beleza, é espreitar."
--------------------------------------------------------------------------------
A arte de espreitar é aprender todas as peculiaridades de teu disfarce, e aprende-las tão bem que ninguém saiba que estás disfarçado. Para consegui-lo, necessitas ser desapiedado, astuto, paciente e gentil . Ser implacável não significa aspereza, a astúcia não significa crueldade, ser paciente não significa negligência e ser gentil não significa ser estúpido. Os guerreiros atuam com um propósito ulterior, que não tem nada a ver com o interesse pessoal. O homem comum atua apenas se há possibilida de de ganância. Os guerreiros não atuam por ganância e sim pelo espírito.
Citações extraídas do livro O Poder do Silêncio, de Carlos Castaneda
segunda-feira, 26 de julho de 2010
A espreita
Marcadores:
amor,
amor universal,
Bom humor,
cura,
dharma e carma,
emoções,
gratidão,
medo,
naturoterapia,
orgulho,
perdão,
prevenção,
qualidade de vida,
saúde,
terapias naturais
Assinar:
Postagens (Atom)